A História do Karatê: Das Origens em Okinawa à Criação do Estilo Wado Ryu

Introdução

O karatê, uma arte marcial reverenciada mundialmente tanto por sua eficácia em combate quanto por sua profunda filosofia, possui uma história rica e multifacetada. Originário da ilha de Okinawa, no Japão, o karatê ev

oluiu ao longo de séculos, absorvendo influências culturais e marciais diversas, até se consolidar nas formas que conhecemos hoje. Esta jornada histórica não apenas moldou as técnicas de luta, mas também imbuiu a prática com um código de conduta e uma busca pelo aperfeiçoamento do caráter. Entre os diversos estilos que emergiram dessa tradição, o Wado Ryu, ou “Caminho da Paz/Harmonia”, ocupa um lugar de destaque, notável por sua ênfase na fluidez, na esquiva e na aplicação inteligente da força. Compreender a trajetória do karatê, desde seus primórdios até a fundação do Wado Ryu pelo Grande Mestre Hironori Otsuka, é mergulhar em uma narrativa de resiliência, adaptação e busca incessante pelo equilíbrio entre corpo, mente e espírito.

As Raízes do Karatê em Okinawa

A história do karatê está intrinsecamente ligada à ilha de Okinawa, um antigo reino independente conhecido como Reino de Ryukyu. Estrategicamente localizada entre a China, o Japão e outras nações do sudeste asiático, Okinawa tornou-se um vibrante centro de comércio e intercâmbio cultural. Essas interações, especialmente com a China, foram cruciais para o desenvolvimento das artes marciais locais. Acredita-se que as primeiras formas de combate desarmado em Okinawa, conhecidas genericamente como “Te” (mão) ou “Tode” (mão chinesa), surgiram da necessidade de autodefesa, influenciadas por técnicas de kung fu (chuan fa) trazidas por diplomatas, comerciantes e mestres chineses. Períodos de proibição do porte de armas impostos por governantes locais e, posteriormente, pelo clã Satsuma do Japão, que invadiu e controlou Okinawa a partir do século XVII, também podem ter incentivado o desenvolvimento e o refinamento de técnicas de combate desarmado como meio de proteção.

As práticas marciais okinawanas eram, inicialmente, transmitidas em segredo, dentro de famílias ou pequenos grupos, e variavam consideravelmente de uma região para outra, dando origem a três principais centros de desenvolvimento: Shuri-te, Naha-te e Tomari-te. Cada um desses estilos possuía características distintas, refletindo as diferentes influências e abordagens de seus mestres. O Shuri-te, praticado pela nobreza e guerreiros do castelo de Shuri, era conhecido por seus movimentos rápidos e lineares. O Naha-te, desenvolvido na cidade portuária de Naha, enfatizava posturas mais estáveis, técnicas de respiração e movimentos circulares, com forte influência das artes marciais do sul da China. O Tomari-te, praticado na vila de Tomari, combinava elementos dos outros dois, sendo conhecido por sua versatilidade.

Evolução e Disseminação do Karatê

No final do século XIX e início do século XX, mestres okinawanos como Anko Itosu, Kanryo Higaonna e Kosaku Matsumora começaram a sistematizar e a ensinar o karatê de forma mais aberta. Anko Itosu, em particular, é creditado por simplificar e adaptar os katas (formas) para torná-los adequados ao ensino em escolas públicas de Okinawa, um passo fundamental para a popularização da arte. Foi também nesse período que o termo “karatê” começou a ser mais amplamente utilizado. Originalmente, os ideogramas para “karatê” significavam “mão chinesa” (唐手), em reconhecimento à sua herança. No entanto, com o crescente nacionalismo japonês e a integração de Okinawa ao Japão, o mestre Gichin Funakoshi, um dos principais responsáveis pela introdução do karatê no Japão continental, propôs a alteração do ideograma “kara” (唐 – China/Tang) para outro com a mesma pronúncia, mas com o significado de “vazio” (空). Assim, “karatê” passou a significar “mãos vazias”, refletindo não apenas a natureza desarmada da luta, mas também conceitos filosóficos budistas sobre o vazio e a pureza mental.

Gichin Funakoshi desempenhou um papel crucial na disseminação do karatê para além de Okinawa. Em 1922, ele foi convidado a realizar uma demonstração de karatê em Tóquio, o que despertou grande interesse e abriu caminho para o estabelecimento de dojôs (locais de treino) no Japão. Funakoshi, juntamente com outros mestres okinawanos como Kenwa Mabuni (fundador do Shito Ryu) e Chojun Miyagi (fundador do Goju Ryu), adaptou e modificou o karatê para torná-lo mais palatável à cultura japonesa, enfatizando a disciplina, a etiqueta e o desenvolvimento do caráter, alinhando-o com os princípios do Budo (caminho marcial japonês). A partir do Japão, o karatê começou a se espalhar pelo mundo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, com o retorno de soldados que haviam aprendido a arte durante a ocupação do Japão e com a emigração de mestres japoneses.

O Surgimento do Wado Ryu

Em meio a essa efervescência e evolução do karatê, surgiu uma figura singular que traria uma nova perspectiva à arte: Hironori Otsuka. Nascido em 1892, Otsuka não era originário de Okinawa, mas sim do Japão continental, e possuía uma sólida formação em Shindo Yoshin Ryu Jujutsu, uma tradicional escola de jujutsu com ênfase em técnicas de esquiva, projeções e controle articular. Otsuka começou seu treinamento em jujutsu aos 13 anos e, em 1921, aos 29 anos, recebeu o menkyo kaiden, o certificado de maestria total em Shindo Yoshin Ryu.

No ano seguinte, em 1922, Hironori Otsuka iniciou seu treinamento de karatê com Gichin Funakoshi, que havia acabado de chegar a Tóquio. Otsuka tornou-se um dos alunos mais dedicados de Funakoshi, absorvendo rapidamente os ensinamentos do mestre okinawano. No entanto, sua profunda experiência em jujutsu levou-o a questionar certos aspectos do karatê como era ensinado na época, que ele considerava, por vezes, demasiado linear e rígido. Otsuka acreditava que os princípios do jujutsu, como a utilização da força do oponente contra ele mesmo, a importância do movimento corporal (tai sabaki) e a aplicação de técnicas de forma fluida e adaptável, poderiam enriquecer e complementar o karatê.

Hironori Otsuka: O Fundador do Wado Ryu

Hironori Otsuka começou a integrar seus conhecimentos de Shindo Yoshin Ryu Jujutsu com as técnicas de karatê que aprendera, buscando criar um sistema de combate mais completo e eficiente. Ele também treinou com outros mestres de karatê proeminentes da época, como Kenwa Mabuni (fundador do Shito Ryu) e Choki Motobu, um renomado lutador de Okinawa conhecido por sua abordagem prática e realista do combate. Essas diversas influências foram fundamentais para a formação do estilo que viria a ser conhecido como Wado Ryu.

Em 1934, Hironori Otsuka fundou oficialmente seu próprio estilo, inicialmente chamado de “Dai Nippon Karate Shinko Kai” (Grande Clube Japonês de Promoção do Karatê). Mais tarde, em 1939, o estilo foi registrado no Dai Nippon Butokukai, a organização oficial de artes marciais do Japão, sob o nome de Wado Ryu Karate Jutsu e Wado Ryu Jujutsu Kenpo. O termo “Wado” (和道) é composto pelos ideogramas “Wa” (和), que significa paz, harmonia ou Japão, e “Do” (道), que significa caminho ou via. Assim, Wado Ryu pode ser traduzido como “Caminho da Paz” ou “Caminho da Harmonia”. Este nome reflete a filosofia central do estilo, que busca não apenas a eficácia em combate, mas também o desenvolvimento de um estado de espírito pacífico e harmonioso.

O Mestre Otsuka foi uma figura notável, não apenas por sua habilidade marcial, mas também por sua visão inovadora. Ele foi o primeiro mestre de karatê a ser reconhecido pelo governo japonês com o título de Meijin (mestre brilhante) em karatê. Ele também introduziu o conceito de kumite (combate) esportivo com regras e proteções, algo que era controverso na época, mas que contribuiu para a popularização do karatê como esporte. O Mestre Otsuka continuou a ensinar e a desenvolver o Wado Ryu até sua morte em 1982, aos 89 anos, deixando um legado duradouro e um estilo de karatê praticado por milhões de pessoas em todo o mundo.

Características e Filosofia do Wado Ryu

O Wado Ryu distingue-se de outros estilos de karatê por sua ênfase na suavidade, na fluidez dos movimentos e na aplicação de princípios do jujutsu. Em vez de bloquear a força do oponente com força, o praticante de Wado Ryu busca desviar o ataque, mover-se para uma posição vantajosa e utilizar a energia do adversário contra ele mesmo. Isso se reflete em técnicas como nagasu (fluir), inasu (desviar) e noru (montar ou acompanhar o movimento do oponente).

Outras características distintivas do Wado Ryu incluem:

  • Posturas mais altas e naturais: Em comparação com estilos como o Shotokan, as posturas no Wado Ryu tendem a ser mais altas e móveis, permitindo maior agilidade e rapidez na movimentação.
  • Ênfase no Tai Sabaki: O movimento corporal (tai sabaki) é fundamental no Wado Ryu. Os praticantes aprendem a mover o corpo de forma eficiente para evitar ataques e criar aberturas para contra-ataques.
  • Técnicas de Jujutsu: O Wado Ryu incorpora diversas técnicas de jujutsu, como projeções (nage waza), imobilizações (katame waza) e chaves articulares (kansetsu waza), que não são tão proeminentes em outros estilos de karatê.
  • Kumite (Combate): O Wado Ryu dá grande importância ao kumite, tanto o yakusoku kumite (combate combinado) quanto o jiyu kumite (combate livre). O Mestre Otsuka desenvolveu uma série de kihon kumite (dez formas de combate básico) que são centrais para o treinamento do estilo.
  • Filosofia: A filosofia do Wado Ryu enfatiza a importância da paz interior e da harmonia. O objetivo do treinamento não é apenas desenvolver habilidades de combate, mas também cultivar um espírito calmo, resiliente e respeitoso. Os princípios do Mestre Otsuka, como “O caminho ou o fim da prática das Artes Marciais não é a luta, mas a procura do caminho da paz e da harmonia interior de cada um”, permeiam o ensino do estilo.

O símbolo do Wado Ryu, frequentemente uma pomba dentro de um círculo, representa a paz e a harmonia que são centrais à sua filosofia. A busca pela harmonia não se limita ao combate, mas se estende a todas as áreas da vida do praticante.

Conclusão

A história do karatê é uma tapeçaria tecida com fios de tradição, inovação e intercâmbio cultural. Desde suas origens humildes em Okinawa, como uma forma de autodefesa, até sua disseminação global como uma arte marcial e esporte respeitado, o karatê demonstrou uma notável capacidade de adaptação e evolução. O estilo Wado Ryu, com sua fusão única de karatê e jujutsu, e sua profunda filosofia de paz e harmonia, é um testemunho do gênio criativo de seu fundador, Hironori Otsuka. Ao praticar o Wado Ryu, os alunos não apenas aprendem técnicas de combate eficazes, mas também embarcam em uma jornada de autodescoberta e desenvolvimento pessoal, seguindo o “Caminho da Paz” trilhado por gerações de mestres.

Referências

  • Brasil Escola. (s.d.). Caratê (karate): golpes, regras, origem e história. Recuperado de https://brasilescola.uol.com.br/educacao-fisica/carate.htm
  • Wikipédia. (s.d.). Caratê. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Carat%C3%AA
  • Wikipédia. (s.d.). Wado-ryu. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Wado-ryu
  • Associação Wado Internacional Karate-Do Portugal (AWIKP). (s.d.). História do Karate Wado-Ryu. Recuperado de https://wadoryu-portugal.com/2013/?page_id=188
  • Wikimedia Commons. (s.d.). Category:Okinawan karate. (Fonte da imagem utilizada) Recuperado de https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Okinawan_karate